sábado, 27 de março de 2021

O massacre dos inocentes:



I

   Tudo ia bem, até o momento em que abri as portas da escolinha de minha filha. Lá encontrei um travesti demoníaco, ensinando às criancinhas métodos politicamente corretos para o enforcamento de freirinhas com as tripas da família monogâmica. Olhei em pânico, as pernas congelaram, e logo uma menina com máscara de Paulo Freire, armada com um martelo soviético, sem piedade esfarelou minhas pernas gélidas. Ela gritava: “Fascista, fascista!”. No chão, o sangue fervente que vertia do toco das antigas pernas que me locomoviam, descongelava parcialmente as migalhas dos meus restos. Procurei rápido onde estava a pequena, o tesouro do meu amor paterno, e não via mais criança alguma; apenas demônios dançando funk. A pedagoga, certamente pós-graduada, girando abraçada na pá do ventilador de teto; gargalhava, jogava piche e penas de ganso para baixo. 

   Tudo ia bem, até a hora do lanche. Uma sineta tocou e sindicalistas barbudos e enormes entraram na salinha carregando solenemente, ao som da Internacional Comunista, um caixão no qual o corpo mumificado de Lênin de alguma maneira parecia-lhes muito apetitoso. O caixão foi colocado numa grande mesa, todos sentaram-se, menos eu que ainda agonizava no chão. As crianças revolucionariamente, com garfos e facas, batiam na mesa gritando: “Co.mi.da! Co.mi.da!”.

   Tudo ia bem, até que do peito de Lênin mumificado, uma força, algo tentava atravessar a barreira das carnes e ossos do velho revolucionário. Sucedeu que numa explosão um buraco jorrando chorume apareceu, e dele uma luz, rubra, hipnotizante radiou e em todos provocou silêncio... sussurrado pelo nada, um poema, um soneto nadificante de beleza estúpida: um não-nada. 

   Tudo ia bem, até que do abismo do centro do tórax luminosamente rebelde, lentamente em Lênin, uma bandeira hasteada por ninguém, subia e subia até grandes alturas. Nós levantávamos o queixo no ritmo em que a bandeira era hasteada. E ela subia tanto e nossos queixos com ela subiam.

   Tudo ia bem, até que os queixos eretos ao máximo, fizeram de cada garganta uma orquídea aberta. 


II

Num mal dia, uma má divindade, num mal universo hipotético, resolveu que criaria o mais terrível dos castigos, para os mais terríveis dos indivíduos. E assim, gerou um lugar, onde esses indivíduos perversos, depois de sua morte, encarnariam em mães que fariam de seus ventres férteis, seus túmulos.

Esses castigados, seriam brutalmente assassinados no momento mais indefeso de suas vidas e pior, no lugar onde desfrutariam do gozo cândido e tranquilo de um ventre, que para eles seria o próprio mundo. Lugar esse, de arquitetura sublime que vexaria a mais portentosa das catedrais, seria uma abóboda uterina feita com as proporções da perfeição e hermeticamente fechada no amor materno. 

Mas no júbilo do carinho, conforto e segurança, tombaria violentamente em suas cabeças as paredes quentes desse mundo que antes lhes parecera intransponível. E num sinistro desfecho, após inimagináveis sofrimentos, saberiam que suas mães festejaram a sua morte como se ela fosse um direito. 

Com toda a certeza que nem uma eternidade de danações seria mais sofrível que esse castigo abominável, a má divindade sentiu vergonha.


O ARGUMENTO TEOLÓGICO DA POLVORA


 

Nós aguardávamos com alguma tensão a chegada dos manifestantes pela demoniocracia. Prontos, fardados e ansiosos para dar uso a uma das mais espetaculares invenções já empreendidas pela humanidade: a bala de borracha. Poucas armas são tão efetivas contra esse monstro chamado Massa. Talvez se pudéssemos encapsular em projéteis balísticos doses da assombrosa realidade a qual todos deveríamos curvar os joelhos, teríamos uma alternativa. Mas não a temos, e o máximo que podemos fazer é ao apertar o gatilho da heroica espingarda de calibre 12, esperar que a dor do projétil disparado, ajude o manifestante a retornar à sanidade. 

   Saibamos, o manifestante com espírito revolucionário é um ser demoníaco, possesso. Há quem duvide que o corpo desse, seja uma apetitosa casa de verão para Satanás. Lembrem-se da má sorte da pobre igreja que estiver no caminho de um protesto. Mesmo que o protesto tenha como alvo o aumento da tarifa de ônibus, ou os ovos de tartaruga esmigalhados na praia, se houver uma igreja no caminho, ela de alguma maneira será atingida, seja por palavras, seja por pedradas. E a bala de borracha no lombo do revolucionário, é de todo certo um ato de caridade cristã. Eu como policial, secretamente trabalho em equipe com Tomás de Aquino; quando preciso, molesto o corpo do possuído e com a bala de borracha marco uma ferida, imprimo pela epiderme esfacelada a vermelhidão da carne que toma a forma do círculo, o início que não tem final. E pelo exíguo sofrimento dessa pequena punição, rezo para que após o rompimento dos vasos sanguíneos, não somente verta sangue, mas entre a palavra do Senhor, através dos argumentos teológicos que minha arma em fogo declara.

   Durante o protesto, antes de enfrentarmos os endemoniados, tive uma epifania. Aguardando ordens, parado no meio da rua, vi no céu cinzento um pequeno ponto dourado de luz, que caiu de alturas exosféricas com a graciosidade de uma pluma, foi caindo. Só eu via, e consumado na ardedura do tempo o longo caminho entre o teto do mundo e meu peito, o ponto luminoso dourado, atravessou: o colete a prova de balas, o tecido de minha farda, o algodão de minha camiseta, a pele de meu corpo, minha carne, meus ossos e finalmente no centro da cruz que há na anatomia de qualquer coração, encontrou um sacrário. Todas as fogueiras queimaram em mim um fogo Santo.

     Pouco tempo depois, que em fileira com meu batalhão, fiz o sinal da cruz, todos escutamos os urros e estrondos da turba que se aproximava. E logo à barulheira histriônica, dobrou a esquina lentamente centenas de antas raivosas montadas por universotários¹ armados com polígrafos. 


¹Roberto piva.

   . 

 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Metafísica da pinguela: Brasileirinhos

 


Tem algo de errado com o Brasileirinhos. O Brasileirinhos é uma ponte, não! É uma pinguela e como toda pinguela sua existência é arranjada no extremo da tensão de ser. E nessa tensão trememos, nossos dentes rangem, afinal ela nos coloca diante de um paradoxo e todo paradoxo do ponto de vista humano, é um caminho sem caminhar e que mesmo assim, vai à frente na ladeira incontrolável dos acontecimentos universais. A pinguela é frágil na perspectiva de que o mínimo peso poderá ser o suficiente para o seu fim, mas ela é incrivelmente forte no sentido de que persiste em sua existência no limite de suas possibilidades de ser o que é. O Brasileirinhos é a pinguela.

Saibamos, a pinguela não é uma ponte e digo mais, ela na hierarquia ontológica dos corruptíveis que como pó, emporcalham a superfície do real, está acima das mais suntuosas pontes quando em relação aos graus de ser. Há uma incontornável urgência na existência da pinguela que a torna superior a qualquer ponte. A ponte durará mais, a ponte até mesmo poderá nos deleitar esteticamente, mas a pinguela tem a sua força de coesão existencial alicerçada na virtude cardeal da humildade. Não são os pregos ou as amarras que fazem com que precariamente a pinguela resista ao peso daqueles que a necessitam, é pela virtude da humildade que a pinguela mantem-se erguida. O brasileirinhos é a pinguela.

A pinguela como a ponte, une dois que estão distantes, dois que sem o seu auxílio deixariam de estar unidos; nesse sentido tanto uma quanto a outra guardam em si um elogio às faculdades superiores do homem. Sua existência depende da conciliação ordenada entre a inteligência e a vontade que rumarão à necessidade de unir. É um feito exclusivamente humano, logo sublime e que de algum modo relaciona-se com outro feito e esse inequivocamente humano: a religião. O que são as covas ou os túmulos primitivos que não pinguelas que rumam ao Pai. Vejamos, em relação aos túmulos não temos dúvidas, eles nos ligam ao suprassensível, ao mundo celeste, mas terá a ponte ou a pinguela seu valor por conta daquilo a que nos ligam? A que nos ligam as pontes e as pinguelas? Pois muito bem, essa é uma questão quase tola, sendo que cada ponte e cada pinguela nos ligarão a alguma coisa diferente,
mas entre as pontes e as pinguelas já é notório diante de nossa explanação que se por um lado podem nos ligar a muitas coisas, pelo o que diz respeito em específico a uma e a outra, diremos que as pontes nos ligarão necessariamente a algo menos urgente, logo menos necessário do que o que nos ligará a franciscana pinguela. E sendo o Brasileirinhos uma verdadeira pinguela, a que com urgência nos ligará?

Aqui encontro uma questão luminosa, talvez excelsa diante de que mesmo ainda distante de qualquer conclusão, vejo uma parca luz atravessar as frestas da porta de minha alma. É algo que mesmo carregado por piadas baratas, certa tosquice cinematográfica congênita, tem magnanimidade. Aí que reside o mistério da pinguela a qual chamamos Brasileirinhos, ela é tosca, é precária, mas une a nós perdidos e imundos a uma esperança de verdade.