sábado, 30 de abril de 2022

A angústia anônima de Heidegger

 Parece-me muito complicado embarcar num problema metafísico, através de uma experiência sentimental, e é isso que Heidegger faz quando versa sobre o nada. Diz-nos que para pensarmos acerca da problemática do nada, é preciso antes experienciá-lo. Jura de pé junto que teve essa experiência, e mais, que todos nós a temos através do sentimento da angústia. Mas nos adverte que essa angústia de que fala, não tem relação alguma com a ansiedade ou o temor, mas sim com a essencial impossibilidade de determinar. Veja só, se isso é verdade, temos aí um sentimento pouco comum a quem nunca foi reitor da Universidade de Friburgo. Mesmo assim, admitamos que a angústia é isso aí. Agora, façamos a angustiosa pergunta: teria Heidegger determinado o que é a angústia, enquanto estava angustiado ou depois de um momento de angústia?

sábado, 16 de abril de 2022

Reflexão de sexta-feira Santa

 A CRUZ


A cada vez que em seus passos, Jesus nosso Senhor, tocou com os pés a poeira do chão, o universo dobrou-se sobre si mesmo e dessa contorção cósmica a realidade fez-se em flor. Até o gesto aparentemente mais gratuito de Jesus, teria o poder de varrer do mundo todas teogonias já proferidas, pois, se há alguma semente de verdade nas tradições anteriores ao cristianismo, é evidente que todas elas estão curvadas à Verdade mesma que é Cristo.  E por conta desse fato, nas narrativas que nos chegaram da vida do Salvador, encontramos uma estonteante coerência simbólica, solenemente amarrada por um forte nó entre a verdade e a beleza. Exemplo disso é a cruz:

"Pela cruz Cristo nos remiu do primeiro pecado e suas consequências. Nossos primeiros pais pecaram ao comer o fruto da árvore proibida. De uma árvore viva, livremente escolheram o fruto que por instantes, apetecera os seus sentidos, mas, sentenciou-os com a morte. Do madeiro da cruz, de uma árvore morta, Jesus Cristo foi alçado e expirou. Suspenso naquele madeiro, adornado pelo sangue santo que vertia do seu martírio, fez-se alimento, o fruto que ainda hoje nos oferece a vida".  

domingo, 10 de abril de 2022

6° reflexão quaresmal

O sofrimento de Cristo na cruz, toca-nos na maioria das vezes, superficialmente, na pele, nos sentidos. Sofremos com o Mestre na proporção de nosso amor pelo salvador. Entretanto, na maioria das vezes estamos tão afastados das sublimidades da transcendência, tão arraigados na matéria e suas seduções, que escapa-nos aquilo que em tudo nos serve de elo mercurial entre a solidez do chão sob nossos pés e a inteligibilidade da verdade que em última instância, oferece-nos sentido para que mantenhamos os pés no chão. 

Ao contemplarmos a paixão de nosso Senhor, parece-me que dificilmente nos atravessa a fronteira craniana, as razões inerentes e a proporção infinita de seu sofrimento. É como se admirássemos um cristal, e até mesmo compreendêssemos algo de sua beleza, mas sem que possamos perceber a força de seu fulgor. Um cristal belo, mas de brilho inacessível. Com Cristo e seu sofrimento, para a maioria de nós, atolados neste lamaçal hodierno, acontece o mesmo. Isso, até sermos curados pela britadeira intelectual do santo doutor angélico, sempre tão desrespeitoso com as muralhas de nossa ignorância. 

Que nós, filhos do paracetamol, sejamos fracos, desnudos mesmo do mais animalesco ímpeto de sobrevivência, é óbvio; mas penso, diante das torturas tão comuns aos antigo, dos inenarráveis sofrimentos que a raça dessa época pretérita convivia como coisa normal, provavelmente enlouqueceríamos ao observarmos a primeira amputação sem anestésico. Veja só, o homem urbano, já imensamente afastado da natureza, quase não é capaz de ver uma galinha ser morta sem praguejar contra o criador por permitir tamanha crueldade. Imaginem frente aos suplícios de alguém sendo cozinhado vivo numa caldeira. 

Por favor, misterioso leitor, não me entenda mal, não faço defesa de cruéis abominações, nem acho correto que homem seja da época que for, aparente tranquilidade com a tortura aleia; o que evidentemente é um disparate, pois, se assim fosse, a própria tortura que muito mais que uma ferramenta de dor, tem em vista a propagação do medo, deixaria por óbvio, de ter alguma finalidade. É tortura porque provoca medo, abominação, e se em algum momento não provocasse esses sentimentos nos homens, perderia sua razão de ser. O caso é que, nós dias de hoje, ademais ao "indivíduo" ocidental, a tortura seria desnecessária, apenas o torturador já seria o suficiente para aterrorizar muitos brutamontes de academia. 

E digo tudo isso, pois talvez a comoção que nos é comum quando contemplamos Cristo crucificado, não se dê por conta das implicações inteligíveis do fato de que Aquele a sofrer seja o próprio Deus encarnado, mas sim pela nossa sensibilidade desordenada que tem como limite de tudo, as barreiras da carne. Infelizmente, para muitos católicos "bem instruídos", a dimensão da divindade de Jesus, muito embora possa ser balbuciada por alguma lembrança catequética, no fundo de seus corações, esteja obnubilada pelo verdadeiro soterramento de nossas consciências no materialismo liberal.

  

domingo, 3 de abril de 2022

5° reflexão quaresmal

Frente ao altar, esforço-me para que no momento da oração, o som de minha voz alcance a materialidade do sacrário de joelhos no chão. Quando observo a beleza das velas, da artesania dos ornamentos de tudo o que compõem o espaço sagrado, esforço-me para que meus olhos feito um véu de seda, cubra cada objeto e caia sobre sua superfície com a mais perfeita delicadeza. E tudo isso, pois, peço a Deus que aos poucos, torne-me amigo do impossível, do imponderável, do inefável e do impensável, de tudo o que mesmo que precariamente, aproxima-se do tamanho de seu Amor.