sábado, 11 de setembro de 2021

Maria e o anjo

 


Hoje o primeiro mistério do terço é a “Anunciação do nascimento de Jesus”. A imagem que ilustra minha reflexão, é uma gravura do maior ilustrador de todos os tempos: Gustave Doré. Não é a mais bela das representações da Anunciação, mas há uma fidedignidade com o anjo Gabriel que poucos artistas se colocaram a enfrentar. Doré ilustrou a Divina Comédia, e nessas ilustrações tentou, como grande artista que era, permanecer coerente com a metafísica tomasiana, como o próprio Dante o fez em sua obra maior. Assim, ao representar os anjos e o plano espiritual/paraíso, arranjou uma baita encrenca: como dar contorno gráfico para coisas essencialmente imateriais?
Vamos aos anjos. Ora, sendo os anjos formas puras, o que significa que não possuem materialidade alguma, dá-se por consequência que são incorpóreos. Isto é, bebezinhos fofinhos com asas - por favor não rasguem as vestes -, são apenas alegorias de pureza e elevação. A coisa é ainda mais complicada. Não tendo matéria, não lhes seria possível nem mesmo estarem inclusos no espaço, pois só um corpo, seja feito do que for, pode ocupar espaço.
Antes de irmos à solução gráfica de Doré para a Anunciação e o anjo Gabriel, vamos à solução metafísica de Tomás de Aquino. Encaremos o problema da presença dos anjos no espaço. Se são os anjos imateriais, não podem ocupar espaço, assim, como então o anjo Gabriel “entrou” nos aposentos de Maria para dizer-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”? Tomás nos responde que há duas maneiras de algo estar em algum lugar, ou pela presença de seu corpo ou pela influência de sua ação. Assim, saibamos que de fato a presença angélica é possível. Mesmo sendo imateriais, podem estar presentes ao influenciar nossa inteligência, vontade e imaginação.
Mas agora, pensemos, você é um ilustrador e sabe de tudo isso, como representará um ser imaterial, uma forma pura? Na ilustração Doré deu ao anjo Gabriel apenas contornos, como se fosse constituído plenamente de luz, pouco se distinguindo do espaço que ocupa. No que diz respeito a representação gráfica, buscou aquilo o que nas nossas experiências sensíveis, mais próximo está da incorporeidade: a luz. E com a luz, que aqui toma notas de metáfora, ofereceu contornos para a imaterialidade angélica.
Disso tudo decorre que nessa gravura temos insinuadas duas dimensões: a de Maria Santíssima que no recolhimento de suas mãos, preserva na interioridade uma experiência intraduzível; e a nossa que por gentileza do artista, faz-nos capazes de tenuemente ver a presença puríssima do anjo, que por conta de nossa miséria pessoal, não teríamos o direito nem de sentir o perfume.   

sábado, 5 de junho de 2021

A eternidade: Mário Ferreira dos Santos

(transcrição parcial de áudio)





A eternidade foi o tema de estudo dos grandes teólogos de todos os tempos. Sobretudo os teólogos cristãos. Porque ele implica uma série de problemas que se ligam às ideias religiosas que exigem soluções que satisfaçam. De qualquer forma o conceito de eternidade, implica o conceito de duração. A duração é a perduração do ser. Mas a eternidade é uma perduração diferente de qualquer outra porque é uma perduração do ser em si mesmo, tota simul - totalmente simultâneo. Não é um presente perene como muitos julgam, alguma coisa que não é nem presente, nem passado, nem futuro. É a simultaneidade do próprio ser perdurando em toda a sua intensidade perfectível. Nós conhecemos uma duração das coisas físicas, das coisas cósmicas. Que é a duração das coisas que sucedem, das coisas que acontecem. E nós medimos essa duração, através de comparações com o próprio movimento cósmico que vai constituir a medida de nosso tempo. A duração das coisas cósmicas sucessivas é propriamente o tempo. Ora, o tempo é assim um aspecto já inferiorizado da duração do ser. Não tem aquela forma efetiva da eternidade. Conceberam entretanto os antigo, isso já vem do pensamento gnóstico, de que existe uma perduração intermédia entre a eternidade e o tempo que é eviternidade, que é a duração das coisas que embora tenham um principio jamais terão um fim. A eviternidade é aquela eternidade que nos prometem as religiões. Prometem para o homem uma vida que não tenha fim, embora, pereça a vida de seu corpo, não porém a vida de seu espirito, da sua alma. Agora esses conceitos todos tem bases ontológicas. São perfeitamente adequados ontologicamente. Não são eivados de contradição intrínseca, não têm contradições formais de qualquer espécies. Quanto a duração das coisas sucessivas, ela é da nossa experiência, temos dela uma evidência intrínseca e extrínseca, interna e externa, mediata e imediata. Quanto as coisas que possam perdurar para sempre sem fim, a nossa especulação as alcança facilmente. Até o materialista terá que admitir que a matéria seja indestrutível, que a matéria perdurará para sempre, sendo matéria. E quem defender outra ideia,  aceitar que no princípio de todas as coisas uma energia, também, aceitará que ela perdurará ara sempre.  Podem as cosias sofrerem transformações, podem elas apresentarem varianças acidentais e substancias, com tudo, atrás delas, há algo que perdura sempre, sendo que é por sua vez o sustentáculo de tudo o quanto está. A esse sustentáculo supremo, os homens dera vários nomes e construíram diversos conceitos. As religiões conceberam-no como um Deus, como um ser de máxima e a absoluta perfeição que é o fundamento último de todas as coisas. Fonte e origem de tudo quanto há. houve ou haverá. Em meio disso tudo o ser humano, de consciência desperta, que volve-se sobre si mesmo e sobre as suas possibilidades, especula sobre elas, julga do seu valor, tende a perscrutar o seu futuro e a querer estabelecer as normas do seu amanhã. Este ser pergunta a si mesmo: serei eu apenas uma coisa que acontece entre coisas, dessas que são apenas transformações substancias e acidentais que passam pela existência, e nada deixam de si? Ou haverá em mim algo que está ligado mais profundo ao que dura sempre, algo que atravessa todos os tempos? Será que não há em mim alguma coisa em comum, alguma cosia a qual seja uma participação daquela perfeição suprema? Se eu sou capaz de alcançar, se sou capaz de especular a tudo isso, pergunta o homem para si: será que entre mim e este ser supremo, há um vazio imenso o qual jamais poderá ser ultrapassado? Naturalmente o homem, reagiu a uma ideia negativa neste sentido, afirmando o que constitui as suas religiões. Isto é, este desejo de religar-se com esse principio, com essa fonte origem de todas as coisas. Cujo desejo estrutura-se, em ritos, em normas de conduta, em modos de proceder. em práticas, em homenagens, em reverências a esse principio supremo que ele precisa penetrar, que ele precisa descobrir e que ele só poderá alcançar se ele o amar profundamente, porque só o amor vence todas as barreiras, só o amor aproxima, só o amor é capaz de ultrapassar todos os vazios.  

quarta-feira, 26 de maio de 2021

O pensamento



 Santo Tomás diz que a alma é a forma substancial do corpo animado. É o princípio do pensamento.


"Assim, talvez o pensamento, a experiência de pensar, seja a mais autêntica experiência que podemos ter de nossa alma. O mistério do pensamento, isso que antes de surgir corporificado em palavras, rompendo a escuridão da caixa craniana, é de alguma maneira burilado nesse lugar inacessível, nesse túnel penumbroso no qual sai feito locomotiva. Meus pensamentos. Até onde são meus? Não saem eles desse lugar inacessível, e mais ou menos prontos? Em que sentido são meus? Será que há mistério mesmo aí? Quem sabe essa estranha escuridão da qual saem os pensamentos, esse silêncio que antecede a voz de minha consciência, seja somente o tempo necessário para que o labor psicoquímico produza frutos? É tão vexatória essa possibilidade, transforma a excelsa ideia do pensamento como "corpo" da alma, em algo muito próximo ao trabalho intestinal que sem o nosso arbítrio faz de deliciosas almondegas, um bolo fecal. Não nos percamos, a inteligência toca os incorruptíveis, há algo nela além para lá do além. Talvez o pensamento, assim como os números em relação ao mundo das formas platônicas, seja a parte mais baixa daquilo o que de mais alto somos".
  

terça-feira, 20 de abril de 2021

A primeira via para a demonstração da estupidez geral

 É estranho que alguns estranhem o apreço pela ordem e pela hierarquia. Uma via muito boa para identificarmos a intensidade da estupidez geral, é a via das explicações. Tal via faz parte de minhas cinco vias para a demonstração da estupidez geral. Em suma, ela professa que a maneira pela qual decidimos explicar algo, revela a intensidade da estupidez geral. E olha, já existem livros de grandes autoridades a tentar com a mais avançada ciência, explicar a importância da hierarquia e da ordem. Enquanto, deveria bastar-nos somente uma gripe para percebermos que o menor desequilíbrio da ordem orgânica de nosso corpo, já é o suficiente para deixar em posição fetal qualquer marombado; e mais, para que de uma vez por todas anarquista algum questione a importância da hierarquia, afinal, ao consultar uma clínica médica, certamente escutará com mais atenção os conselhos do médico da clínica, do que as opiniões do porteiro. 

(cabe-nos salientar a meta-análise de nossa via, que demonstrando, nos demonstra uma estupidez maior do que ela mesma é capaz de demonstrar. Séculos atrás, um famoso escolástico tentava demonstrar a existência de Deus, hoje a inteligência afogada nas águas da estupidez, precisa de argumentos para demonstrar a existência daquilo que lhe afoga.)¹


1 - Os parênteses que acrescentamos é uma demonstração perturbadora do quanto a situação de nossa inteligência é ruim.²

2 - O mal é incansável, a estupidez não tem fim! É um fractal de burrice invencível!³

³ ²²³² ¹¹ ³²³²¹³ ³²¹  ³²³²³ ¹²³³²¹³ 



sábado, 17 de abril de 2021

conversa com Deus

   



   Certo dia, pensando essas coisas do alto, conversava com Deus e decidi pedir-lhe algo de material. Pedi e concluí que tudo o que saía de minha boca era indigno e mentiroso. Senti vergonha e para melhorar a situação, resolvi não pedir nada a mim e sim ao próximo. Mesmo assim, de tudo o que saiu de minha boca, só havia indignidade e mais mentiras. Aturdido com a miséria que me era própria, achei melhor nada pedir nem a mim nem a outro, e passei apenas a agradecer. Quanta magnanimidade a minha! A verdade é que em algum lugar nesses agradecimentos, por mais sinceros que eu tentasse que eles fossem, aquilo em mim de inevitavelmente errado, falível e sempre pronto a feder, maculava-os. Logo, percebi que no universo inteiro de todas as frases possíveis, absolutamente só uma poderia ser dirigida a Deus sem que houvesse qualquer possibilidade de indignidade e mentira. A frase é: Perdão ó Senhor. Afinal, mesmo a falibilidade possível naquilo o que se diz, sempre presente por conta da falibilidade daquele que diz, é anulada no pedido de perdão que é infalivelmente a expressão de um desejo que ao mesmo tempo em que deseja, reconhece a própria miserabilidade daquele que deseja.  

sábado, 27 de março de 2021

O massacre dos inocentes:



I

   Tudo ia bem, até o momento em que abri as portas da escolinha de minha filha. Lá encontrei um travesti demoníaco, ensinando às criancinhas métodos politicamente corretos para o enforcamento de freirinhas com as tripas da família monogâmica. Olhei em pânico, as pernas congelaram, e logo uma menina com máscara de Paulo Freire, armada com um martelo soviético, sem piedade esfarelou minhas pernas gélidas. Ela gritava: “Fascista, fascista!”. No chão, o sangue fervente que vertia do toco das antigas pernas que me locomoviam, descongelava parcialmente as migalhas dos meus restos. Procurei rápido onde estava a pequena, o tesouro do meu amor paterno, e não via mais criança alguma; apenas demônios dançando funk. A pedagoga, certamente pós-graduada, girando abraçada na pá do ventilador de teto; gargalhava, jogava piche e penas de ganso para baixo. 

   Tudo ia bem, até a hora do lanche. Uma sineta tocou e sindicalistas barbudos e enormes entraram na salinha carregando solenemente, ao som da Internacional Comunista, um caixão no qual o corpo mumificado de Lênin de alguma maneira parecia-lhes muito apetitoso. O caixão foi colocado numa grande mesa, todos sentaram-se, menos eu que ainda agonizava no chão. As crianças revolucionariamente, com garfos e facas, batiam na mesa gritando: “Co.mi.da! Co.mi.da!”.

   Tudo ia bem, até que do peito de Lênin mumificado, uma força, algo tentava atravessar a barreira das carnes e ossos do velho revolucionário. Sucedeu que numa explosão um buraco jorrando chorume apareceu, e dele uma luz, rubra, hipnotizante radiou e em todos provocou silêncio... sussurrado pelo nada, um poema, um soneto nadificante de beleza estúpida: um não-nada. 

   Tudo ia bem, até que do abismo do centro do tórax luminosamente rebelde, lentamente em Lênin, uma bandeira hasteada por ninguém, subia e subia até grandes alturas. Nós levantávamos o queixo no ritmo em que a bandeira era hasteada. E ela subia tanto e nossos queixos com ela subiam.

   Tudo ia bem, até que os queixos eretos ao máximo, fizeram de cada garganta uma orquídea aberta. 


II

Num mal dia, uma má divindade, num mal universo hipotético, resolveu que criaria o mais terrível dos castigos, para os mais terríveis dos indivíduos. E assim, gerou um lugar, onde esses indivíduos perversos, depois de sua morte, encarnariam em mães que fariam de seus ventres férteis, seus túmulos.

Esses castigados, seriam brutalmente assassinados no momento mais indefeso de suas vidas e pior, no lugar onde desfrutariam do gozo cândido e tranquilo de um ventre, que para eles seria o próprio mundo. Lugar esse, de arquitetura sublime que vexaria a mais portentosa das catedrais, seria uma abóboda uterina feita com as proporções da perfeição e hermeticamente fechada no amor materno. 

Mas no júbilo do carinho, conforto e segurança, tombaria violentamente em suas cabeças as paredes quentes desse mundo que antes lhes parecera intransponível. E num sinistro desfecho, após inimagináveis sofrimentos, saberiam que suas mães festejaram a sua morte como se ela fosse um direito. 

Com toda a certeza que nem uma eternidade de danações seria mais sofrível que esse castigo abominável, a má divindade sentiu vergonha.


O ARGUMENTO TEOLÓGICO DA POLVORA


 

Nós aguardávamos com alguma tensão a chegada dos manifestantes pela demoniocracia. Prontos, fardados e ansiosos para dar uso a uma das mais espetaculares invenções já empreendidas pela humanidade: a bala de borracha. Poucas armas são tão efetivas contra esse monstro chamado Massa. Talvez se pudéssemos encapsular em projéteis balísticos doses da assombrosa realidade a qual todos deveríamos curvar os joelhos, teríamos uma alternativa. Mas não a temos, e o máximo que podemos fazer é ao apertar o gatilho da heroica espingarda de calibre 12, esperar que a dor do projétil disparado, ajude o manifestante a retornar à sanidade. 

   Saibamos, o manifestante com espírito revolucionário é um ser demoníaco, possesso. Há quem duvide que o corpo desse, seja uma apetitosa casa de verão para Satanás. Lembrem-se da má sorte da pobre igreja que estiver no caminho de um protesto. Mesmo que o protesto tenha como alvo o aumento da tarifa de ônibus, ou os ovos de tartaruga esmigalhados na praia, se houver uma igreja no caminho, ela de alguma maneira será atingida, seja por palavras, seja por pedradas. E a bala de borracha no lombo do revolucionário, é de todo certo um ato de caridade cristã. Eu como policial, secretamente trabalho em equipe com Tomás de Aquino; quando preciso, molesto o corpo do possuído e com a bala de borracha marco uma ferida, imprimo pela epiderme esfacelada a vermelhidão da carne que toma a forma do círculo, o início que não tem final. E pelo exíguo sofrimento dessa pequena punição, rezo para que após o rompimento dos vasos sanguíneos, não somente verta sangue, mas entre a palavra do Senhor, através dos argumentos teológicos que minha arma em fogo declara.

   Durante o protesto, antes de enfrentarmos os endemoniados, tive uma epifania. Aguardando ordens, parado no meio da rua, vi no céu cinzento um pequeno ponto dourado de luz, que caiu de alturas exosféricas com a graciosidade de uma pluma, foi caindo. Só eu via, e consumado na ardedura do tempo o longo caminho entre o teto do mundo e meu peito, o ponto luminoso dourado, atravessou: o colete a prova de balas, o tecido de minha farda, o algodão de minha camiseta, a pele de meu corpo, minha carne, meus ossos e finalmente no centro da cruz que há na anatomia de qualquer coração, encontrou um sacrário. Todas as fogueiras queimaram em mim um fogo Santo.

     Pouco tempo depois, que em fileira com meu batalhão, fiz o sinal da cruz, todos escutamos os urros e estrondos da turba que se aproximava. E logo à barulheira histriônica, dobrou a esquina lentamente centenas de antas raivosas montadas por universotários¹ armados com polígrafos. 


¹Roberto piva.

   . 

 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Metafísica da pinguela: Brasileirinhos

 


Tem algo de errado com o Brasileirinhos. O Brasileirinhos é uma ponte, não! É uma pinguela e como toda pinguela sua existência é arranjada no extremo da tensão de ser. E nessa tensão trememos, nossos dentes rangem, afinal ela nos coloca diante de um paradoxo e todo paradoxo do ponto de vista humano, é um caminho sem caminhar e que mesmo assim, vai à frente na ladeira incontrolável dos acontecimentos universais. A pinguela é frágil na perspectiva de que o mínimo peso poderá ser o suficiente para o seu fim, mas ela é incrivelmente forte no sentido de que persiste em sua existência no limite de suas possibilidades de ser o que é. O Brasileirinhos é a pinguela.

Saibamos, a pinguela não é uma ponte e digo mais, ela na hierarquia ontológica dos corruptíveis que como pó, emporcalham a superfície do real, está acima das mais suntuosas pontes quando em relação aos graus de ser. Há uma incontornável urgência na existência da pinguela que a torna superior a qualquer ponte. A ponte durará mais, a ponte até mesmo poderá nos deleitar esteticamente, mas a pinguela tem a sua força de coesão existencial alicerçada na virtude cardeal da humildade. Não são os pregos ou as amarras que fazem com que precariamente a pinguela resista ao peso daqueles que a necessitam, é pela virtude da humildade que a pinguela mantem-se erguida. O brasileirinhos é a pinguela.

A pinguela como a ponte, une dois que estão distantes, dois que sem o seu auxílio deixariam de estar unidos; nesse sentido tanto uma quanto a outra guardam em si um elogio às faculdades superiores do homem. Sua existência depende da conciliação ordenada entre a inteligência e a vontade que rumarão à necessidade de unir. É um feito exclusivamente humano, logo sublime e que de algum modo relaciona-se com outro feito e esse inequivocamente humano: a religião. O que são as covas ou os túmulos primitivos que não pinguelas que rumam ao Pai. Vejamos, em relação aos túmulos não temos dúvidas, eles nos ligam ao suprassensível, ao mundo celeste, mas terá a ponte ou a pinguela seu valor por conta daquilo a que nos ligam? A que nos ligam as pontes e as pinguelas? Pois muito bem, essa é uma questão quase tola, sendo que cada ponte e cada pinguela nos ligarão a alguma coisa diferente,
mas entre as pontes e as pinguelas já é notório diante de nossa explanação que se por um lado podem nos ligar a muitas coisas, pelo o que diz respeito em específico a uma e a outra, diremos que as pontes nos ligarão necessariamente a algo menos urgente, logo menos necessário do que o que nos ligará a franciscana pinguela. E sendo o Brasileirinhos uma verdadeira pinguela, a que com urgência nos ligará?

Aqui encontro uma questão luminosa, talvez excelsa diante de que mesmo ainda distante de qualquer conclusão, vejo uma parca luz atravessar as frestas da porta de minha alma. É algo que mesmo carregado por piadas baratas, certa tosquice cinematográfica congênita, tem magnanimidade. Aí que reside o mistério da pinguela a qual chamamos Brasileirinhos, ela é tosca, é precária, mas une a nós perdidos e imundos a uma esperança de verdade.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

O iogue de Bagé



Fiz uma breve, porém minuciosa pesquisa, no Datafolha de minha imaginação e cheguei ao inequívoco resultado de que: "há mais mestres de sabedoria oriental no interior do Rio Grande do Sul, do que em toda Índia." Não faz muito, conheci o Lobo Cinzento. Um homem profundamente espiritualizado, quando jovem era o maconheiro da cidade, mas também filho do Alemão, dono da melhor churrascaria de Anta Gorda. De tanto o piá incomodar, o pai deu-lhe dinheiro para conhecer o mundo. Resultado, voltou à sua cidadezinha oito anos depois, com sífilis, um livro sobre os chákras e um novo nome: Lobo Cinzento.

Olha, essa história é muito comum. O jovem impetuoso, sentindo-se aprisionado pelas muralhas das convenções sociais, resolve fugir com a desculpa de conhecer o mundo. Vai e muitas vezes realmente enfrenta diversas aventuras, vive como um nômade e de fato tais vivências não raras vezes tingem sua personalidade com algum ar de sabedoria. Mas o que ocorre frequentemente, é que depois de inúmeras aventuras, colhem os frutos desse tipo hodierno de aventureiro drogado que mal pode dizer que guarda muitos tesouros em sua memória, posto que a maioria de suas recordações, sumiram no lixo de suas ressacas psicotrópicas.

Em verdade, a maioria desses caras, voltam para a casa com quase quarenta anos e descobrem que mesmo tendo conhecido o mundo, ainda dependem de suas famílias. Tornaram-se especialistas em sobreviver às agruras de viagens perigosas, mas sedentarizando-se não são capazes de sobreviver sem o auxílio paterno. 

Descrito o cenário, não poucos, sem os país para ajudar ou com alguma vergonha na cara, na tentativa de ganhar dinheiro, tornam-se vigaristas da transcendentalidade: astrólogos, massagistas, xamãs ou iogues. E são tantos. Em qualquer cidadezinha, já há mais centros de meditação do que CTGs. Ora, a bestialidade de alguns funcionários públicos, das dondocas cheias de tédio e dos esquisotéricos, todos buscando algo que disfarce o buraco espiritual de suas vidas, faz-lhes dispostos a obedecer servilmente o antigo drogadinho da cidade.

E em relação a isso, nada de surpresas. Como é fácil ser um mestre numa tradição antiga que ninguém conhece e que muito provavelmente em sua originalidade, tenha surgido de um estelionatário. A estupidez venceu, dizia-me um antigo colega da faculdade de filosofia - com quase toda certeza maluco. E é verdade, a estupidez venceu. Os mesmos que me chamam de supersticioso por rezar o terço, desavergonhadamente alinham seus chákras, tomam batida de placenta e não saem de casa sem conferir o horóscopo picareta dos jornais. 

Autêntico mesmo é o iogue de Bagé:

 - Senta guasca, e para dessa frescura de posição de Lótus e te firma na mais antiga tradição oriental do sul: a posição do Guanxuma no mato.